quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

O Grotesco - “‘Grotesco! grotesco!’ – Woyzeck” - Wolfgang Kayser

por: Jefferson Almeida

Qual o aspecto sob o qual se apresenta o mundo em Woyzeck e que permite um procedimento tão artificioso?. (KAYSER: 1986, 84)

É afim de responder perguntas como essas que Wolfegang Kayser se dedica neste capítulo tão generoso a despeito da obra de George Büchner, mais especificamente, Woyzeck.

O drama büchniano, escrito em 1837, ganha, aqui uma atenção especial no que diz respeito as possibilidades de se trabalhar o grotesco, em várias camadas, na sua concepção. Desde a dramaturgia – inacabada pela morte prematura do autor – até possíveis resultados cênicos são estudados aqui como uma fonte inesgotável desse gênero – o grotesco – ao qual Kayser se detém por relevantes162 páginas.

O foco do estudo de Kayser não é o de encerrar conclusões, mas, apontar para caminhos, dentro de seu campo de perspectiva, logo, alguns apontamentos, algumas aproximações são feitas, mas não, homologadas.

Seguirei, então, recolhendo citações do texto e fazendo os comentários que forem necessários.

“Em tudo exijo… vida, possibilidade de existência, aí está certo; não precisamos, então perguntar se é bonito ou feio. A sensação de que tudo quanto é criado tem vida, deve estar acima destes dois aspectos e ser o único critério em coisa de arte.” Frases como esta, em que Lenz, dentro do relato büchneriano, manifesta seu enfoque básico, foram, com toda razão, encaradas como opiniões do próprio Büchner. É possível opor-lhes algumas confissões, de vibração parecida, inseridas em suas cartas. Mas, a nosso ver, carecem de fundamento as conclusões ulteriores, segundo as quais semelhante adesão evidente a um realismo rigoroso oferecia firme alicerce para a interpretação das obras de Büchner. (KAYSER: 1986, 83-84) (grifo nosso)

Quando se lêem, em seu contexto, frases como a acima citada, percebe-se logo que Büchner-Lenz[1] não concebem, de modo algum, a obra de arte como uma composição de cenas da realidade[a], precisamente observadas e fielmente reproduzidas. (KAYSER: 1986, 84)

“É preciso amar a humanidade para penetrar na essência particular de cada um; ninguém deve parecer demasiado humilde, ninguém demasiado feio, só assim é possível compreendê-la.” (KAYSER: 1986, 84)

A tarefa que se consigna à obra de arte, a saber, dar algo a sentir numa medida especial e uniforme, relacionando-se amiúde com o seu caráter de “conformação”[b] (gebilde). (KAYSER: 1986, 84)

“Desenho minhas figuras tal como as considero adequadas à natureza[c] e à história”.
O aspecto, sob o qual se efetua a configuração unificadora da obra de arte, deve ser um dos aspectos sob os quais se apresente a própria natureza, eis o cerne da estética de Büchner. (KAYSER: 1986, 84)

A natureza é uma da molas de compreensão do homem há muito e uma das que resistem bravamente, a este respeito é dito em Marat/Sade – A Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat Encenada Pelos Internos do Asilo de Charenton sob a direção de Marquês de Sade, peça de Peter Weiss, filmografada por Peter Brook:

“Mas o homem deu falsa importância para a morte. Todo animal, planta ou homem que morre, e mais alguns compostos da natureza viram esterco, e sem ele nada cresceria, nada poderia ser criado. A morte é simplesmente parte do processo. Toda morte, até a mais cruel se afoga na total indiferença da natureza. A natureza olhará indiferente, se destruirmos toda a raça humana. Eu odeio a natureza. Este espectador sem paixão, este rosto endurecido pelo tempo que pode suportar tudo. Isso nos leva a cometer atos cada vez maiores. Mas embora odeie esta deusa, vejo que os grandes atos na História seguiram as leis. A natureza ensina o homem a lutar por sua felicidade. E se ele deve matar para alcançar essa felicidade, então o assassinato é natural. Não esmagamos sempre os mais fracos que nós? Não decaptamos os poderosos com uma contínua luxúria e maldade? Não experimentamos em nossos laboratórios, antes de aplicar a solução final!? O homem é um destruidor. Mas se mata e não tem prazer nisso é uma máquina. Deveria destruir com paixão, como um homem. (grifo nosso)

“Encontro na natureza humana uma horrível igualdade, nas relações humanas uma força iniludível, outorgada a todos e a ninguém. O indivíduo é somente espuma sobre a onda, a grandeza um mero acaso, o império do gênio uma peça de marionetes, uma lida ridícula contra a lei férrea, que se reconhece por fim como superior, que é impossível de dominar.” – “O que é isso que dentro de nós mente, assassina e rouba?” – “Ai de nós, pobres músicos barretes! Os gemidos em nosso suplício existirão apenas para que atravesses as fendas de nuvens e, ressoando mais e mais longe, morram como um sopro melodioso nos ouvidos celestiais?” (KAYSER: 1986, 84-85)

Em frases deste tipo se manifesta o temor diante do “fatalismo”[d], isto é, diante da falta de liberdade do homem, da sensação de ser determinado e impelido, o temor diante dos poderes obscuros, sinistros e incognoscíveis, que atuam por nosso intermédio e assim zombam de toda razão humana. Büchner registra em suas cartas um topos, que ele também coloca na boca de suas personagens: o mundo como teatro de títeres[2]. (KAYSER: 1986, 85)

Woyzeck e Marie destacam-se entre as demais personagens apenas por terem alma. Experimentam a impotência de tudo o que é humano, e sofrem por causa de si mesmos e do mundo. A plasmação da criatura sofredora, em Woyzeck e em Marie, pertence a expressão formal do drama, e o fundo significativo que lhes corresponde, amplia o fundo significativo do tragicômico, cuja comprovação a partir da expressão formal nos interessa antes de mais nada. (KAYSER: 1986, 86 – Nota 41)


Bibliografia

BÜCHNER, George / 1813 - 1837
“Woyzeck” In.: Büchner: na pena e na cena / J. Guinsburg e Ingrid Dormien Koudela, (organização, tradução e notas). – São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 235-302

KAYSER, Wolfegang
“Grotesco! grotesco! – Woyzeck” In.: O Grotesco/ Wolfegang Kayser; tradução J. Guinsburg – São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 83-86
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[1] A junção dos dois nomes (do autor e da personagem) num mesmo substantivo, serve para, mais uma vez, indicar que o primeiro se utiliza do discurso do segundo para expressar uma opinião que, na verdade, é a sua.
[2] “Com isto não negamos que em Büchner a palavra ‘teatro de marionetes’ soe mais amarga, aflitiva e atormentada.” (KAYSER: 1986, 85)
“ Aquele aspecto, relativo ao mundo, que poderíamos definir, com as formulações büchnianas, como o do teatro de marionetes ou de Callot-Hoffmann, se converte no aspecto em que o mundo de Woyzeck é criado, unificado e conscientemente exagerado.” (KAYSER: 1986, 85-86) (grifo nosso)
“Percebe-se de novo como neste caso um princípio estrutural do teatro de bonecos, que em si pode ter um efeito absoluto e puramente cômico, recebe um significado mais profundo e um conteúdo conceitual cósmico, que juntam o sorriso ao tremos diante do mundo onde os homens não são mais eles mesmos.” (KAYSER: 1986, 86)


[a] Na obra dramaturgia de Büchner é interessante perceber o que concerne a cena cotidiana, aqui chamada de cena da realidade, e que nela acontece de forma trivial, ou seja, os textos onde são utilizados ambientes, ações e diálogos do dia-a-dia, como em Lenz, por exemplo. Em Woyzeck, ao contrário, a ação se passa no que podemos chamar de realidade natural: aqui o tempo em que as ações se dão é o tempo da natureza (vide nota C) e não o tempo da realidade que, por sua vez é determinado, quase sempre, pelo código do tempo (segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, séculos, etc.)

[b] Conformação, aqui, quer significar uma não contestação ao futuro que lhe é apresentado. Exemplo: Woyzeck é obrigado a trabalhar de forma sobre-humana para dar a Marie e ao filho tudo que precisa e a esta condição, ele se conforma.

[c] Büchner encara, em suas obras, a natureza como a gestora da força que move as personagens. A natureza como aquilo que é a matéria-prima do homem, ao animal da raça humana. Sartre diria que o homem lembrará que é animal quando necessitar de encher-se e esvaziar-se, Büchner parece querer fazer com que os homens lembrem-se que são animais; eles não o são, conscientemente, mas agem como o tal instintivamente, logo, naturalmente. Em Woyzeck a categoria animalesca das personagens são, em suma, o que lhes constituem; o Pregoeiro, no fragmento 3, parece descrever todas as personagens que formam o hall da peça dizendo: Tudo neles é educação, apenas têm uma razão animalesca, ou antes uma animalidade inteiramente racional.
“Animal maluco. O homem é um animal maluco. Sou um animal maluco.” (Marat/Sade)

[d] Para melhor explicar o que está sendo chamado de fatalismo, usarei uma citação do próprio Kayser neste mesmo capítulo: “Pois já não é Deus quem escreveu os papéis dos seres humanos e movimenta os bonecos, mas um id (es) inapreensível e sem sentido.

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